quinta-feira, 7 de junho de 2018

descaminhos


                                
desmonto meu verso e descubro
teu sorriso ardendo na minha ideia
vereda aberta de silencioso desequilíbrio

- o amor é palma que brota no incerto -

quando digo eu te amo
não quero a semente da flor inquieta
procuro encruzilhadas e margens de rio.


                                             (Retrato da Vida - Dominguinhos + Djavan)

sábado, 2 de junho de 2018

excerto sobre calor n.1

um corredor de luz
no meio da avenida escura
isso é o amor? não
mas é um caminho
não torça o nariz pro que eu digo
sábio é quem desconfia do óbvio.

sábado, 12 de maio de 2018

fauna

a boca se abre e de dentro saltam
velhas alquimias de sede e água
não são fáceis os diálogos entre 
gatos e pássaros
há que se elaborar um dicionário 
de nuances para rastros de pelo e pena
esquecidos sobre cada palavra
atirada no precipício das diferenças 
o poema que já foi um soldado 
entrincheirado
na última guerra dos vencidos
hoje inventa vitórias disfarçadas 
de surrealismo
gato e pássaro ruminam o horizonte 
com suas línguas amputadas
enquanto arrastam devagar 
o seu amor entre as folhagens.


                                                             (Erik Satie - Gnossienne Nº1)





segunda-feira, 23 de abril de 2018

nova era


quem se interessa
pela queda dos impérios
quando o amor está arruinado
e a existência não tem mais
um endereço físico?
a grandeza tem outro significado
para quem está com o nariz
arrastando na terra
tentando suportar o martírio

se a estratégia da natureza
é tornar tudo adaptável
prefiro ser mais um fóssil
na galeria dos extintos
não compactuarei com a fala
saudosa da ordem imposta
aos mortos e exilados
quero ouvir a voz dos loucos
- do coração-partido -
que tremula na bandeira manchada
pela fome indignada dos aflitos.

sexta-feira, 20 de abril de 2018

por uma causa


            "onde a poesia não é filha do deserto nem da sede
      não é poesia"
                                (António Ramos Rosa)



esqueça as metáforas 
não brinco mais com palavras 
no avesso do sonho 
você consegue me ouvir? 
trata-se de saudade 
crua 
deslavada 
atravessando aquela ponte 
de mosquito sem asa 
tentando dizer 
que a poesia 
é um mapa 
para burlar as fronteiras 
antidemocráticas 
de uma vida pacata e feliz 
vou gritar 
morte aos fantasmas 
até que me vejam 
nua 
desarmada 
até que você saiba 
que não esqueço de nada 
até que você ouça 
a falta de ar 
e a corrente sanguínea acelerada 
que movimentam meu coração. 

quarta-feira, 18 de abril de 2018

subversão

                                         "suave coisa nenhuma"
                                   (Secos e Molhados)

guernica
tela bonita
centenas de mortos

a rosa de hiroxima
virou melodia
amontoado de corpos

os anjos de sodoma
não se qualificam
no paraíso mórbido

pietá
é a rainha
daqueles que choram

a arte  não apazigua
beleza subversiva
hemorragia no poro.

segunda-feira, 16 de abril de 2018

a espera

pedaço de saudade
é essa coisa que às vezes cheira a sangue
como o céu rebelado do poente
ninguém esqueceu o burburinho da tarde
as vozes dos poemas novos e velhos
espero que a guerra acabe
para desarmar minas e sementes.



terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Confissão

"Hoje executarei meus versos
na flauta de minhas próprias vértebras."
(Maiakóvski)

Se eu tivesse força suficiente
para negar aquilo que em mim 
transforma pó em palavra,
Deixaria cada uma de minhas páginas 
descansando sob meus sapatos
Levaria adiante apenas aquele silêncio
típico dos que alcançam o paraíso. 
Mas essa fraqueza que me arrasta,
escreve para merecer a luz que 
cada um comunga com as estrelas.
(Substância primeira
Instância derradeira)
Se eu tivesse força suficiente,
negaria cada um dos verbos que se
movem para compor minha desordem
E seguiria com a aparência leve.
Mas sei que nenhuma ausência 
transpira um verso honesto.
O poeta surge de corpo aberto
e alma derramada,
Sua escrita corre e se espalha 
pesando sobre os móveis, sujando 
as unhas, dando a cara a tapa.
Se eu tivesse força suficiente, 
quereria apenas a parte que me cabe.
Só que minha natureza é a dos fracos
Dos que carregam seus ossos expostos 
Dos que não resistem
Dos que não se calam.

sábado, 13 de dezembro de 2014

VIGÍLIA

"Ó madrugada, tardas tanto...
 Vem...
Vem, inutilmente,
Trazer-me outro dia igual a este,
 a ser seguido por outra noite igual a esta...
Vem trazer-me a alegria dessa esperança triste"
(Álvaro de Campos)
 
Tenho olheiras maiores que o céu 
da minha cidade
Há muito, dormir deixou de ser
importante 
O tempo de sonhar já acabou
Guardo apenas a leve sensação 
do sono
Que é azul e também amarelo
Para que assim permaneça
Escrito com luz no meu sorriso
(Quando lembro das noites de paz).
Manter-se acordado é imperativo 
Porque a vida é urgente
E se piscar o olho... Passou.
Cresce, corre, ama, casa, trabalha...
Seja feliz!
Cadê a calma? Cadê a alma?
- Fugiu com o passarinho verde
Que bateu asas e voou.

(Cazuza e Gilberto Gil: Um trem para as estrelas)

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Impressões de Novembro...

"Ninguém alguma vez ou pintou,
 esculpiu, modelou, construiu ou inventou
 senão para sair do inferno."
 (Antonin Artaud)

Da última vez que te vi
Restaram pedaços de tarde.
Aquelas horas sem infância 
Cheias de aranhas verdes
Que enfeitam os corações com teias
Ainda que não tenham esperança.
#
Da última vez que te vi
Restaram alguns fios de barba 
Prendendo o sol no lábio mudo.
Escondido no riso disfarçado, 
Mora o que não cabe no mundo.
#
Da última vez que te vi
Restaram  poemas náufragos.
Ainda bóiam num certo lago...
Carecem de vento que os arraste
Para um chão que seja surdo.
#
Da última vez que te vi 
Restaram sonhos e arestas.
O poeta entrou para o Convento
Num silêncio maior que novembro.
Porém, um beijo no mirante gritou
Nada morre se algo ainda resta.

(DeVotchka - How it Ends)